“Geny: A Costureira dos Sonhos e Amizades do Bairro 71”
Tema: A COSTUREIRA DA NOITE Corria o ano de 2016. O bairro 71, em Benguela, ainda não conhecia o alcatrão, e as chuvas de Março faziam questão de lembrar que os buracos das ruelas eram eternos. Foi nesse cenário de poças de água e futebol de chinelas nos pés que a Geny se tornou protagonista das nossas histórias. Geny era diferente. Tinha um olhar que parecia sempre procurar o infinito. Enquanto muitos de nós só pensávamos em brincar em poças de água do riacho dos Três Tubos, ela falava de sonhos. Sonhos grandes demais para caber naquele bairro poeirento. Estudante do Piaget e costureira por vocação, ela vivia entre livros e tecidos. Muitas vezes, trabalhava durante as noites, costurando à luz fraca do candeeiro, porque o dia não lhe oferecia tempo suficiente. Mas não desistia. Sabia que colocar a linha na ponta da agulha, com a ajuda dos seus óculos graduados, era mais que um gesto técnico: era ali que os seus sonhos ganhavam forma. Os sonhos estavam em seus dedos. Assim como ela, eu também usava óculos graduados por causa da minha pouca memória visual. Por sermos vizinhos, muitas vezes ouvíamos, mesmo nas noites mais sombrias e solitárias dos dias da semana, o barulho da máquina de costura da Gê (como carinhosamente eu a tratava). Era um som metálico e rítmico como um kuduro de 120 bpms, que atravessava as paredes de blocos e parecia costurar não só os panos de samakaka, mas os próprios dias difíceis que vivíamos. Era como se cada ponto dado fosse uma promessa de que a vida haveria de melhorar. Geny era religiosa demais. Não faltava por nada. Em dias de missa, bastava segui-la para encontrar o caminho certo até a igreja mais próxima. E se formássemos um cortejo — Dany, Edussany, eu — era ela quem ia à frente, como quem conduz a fé da vizinhaça. Porque sim, éramos todos vizinhos. Crescemos juntos entre panelas de ferro, vozes roucas de manhã cedo, jogos de boraquinhos e risadas no fim do dia. Muitas vezes, acarretávamos água na casa da Ndjena — assim como era tratada pelo Dany e Edussany — , pois em nossas casas não jorrava água e amizade, na quela altura, também se media em baldes cheios. Em casa dela havia uma árvore grande de amêndoas que sombreava o quintal. Aquilo era o nosso supermecado natural. Por vezes, quando saíamos da escola com o estômago a roncar e sem um kwanza no bolso, íamos directamente ao kubico dela para banzelar e espantar a fome. Ela fazia questão de subir na árvore de amendoeiras com a mesma agilidade com que alinhava os seus sonhos. Tirava para nós, depois sentava-se connosco no chão, acompanhando a nossa mastigação com um quilo de água. A dança dos dentes sobre as amêndoas, regada por goles partilhados, tinha o sabor da infância e da amizade verdadeira. Uma tarde, sentados no cimento sujo da escola inacabada, ela disse: — um dia, vamos sair daqui e contar a história do bairro 71 ao mundo. Rimos, claro. Quem no bairro 71 podia ser ouvido além dos limites de Benguela? Mas Gè não riu. Olhou-nos fixamente com a mesma seriedade com que ensinava o seu irmão, que ainda partia a agulha, a pedalar na sua máquina de costura. Anos passaram-se. Hoje, olho para trás e percebo que ela estava certa. Ndjena, depois de ter regressado da Etiópia, tornou-se a melhor designer de Benguela e a segunda do país, com os seus vestidos a desfilarem em passarelas internacionais. Dany tornou-se padre e guia espiritual de muitas almas perdidas, depois de ter feito a sua formação em Kinshasa, Congo. Edussany é agora engenheiro de som, conhecido pelas suas misturas que dão alma à música angolana, isso graças a formação que fez na África do Sul. E eu? Tornei-me mestre de artes marciais em judo e kung fu. Carrego no corpo as marcas da disciplinas e no espírito a honra do bairro onde tudo começou. Ficamos boquiabertos quando recebemos, em pontos geográficos diferentes, o convite para o casamento da Geny. A nossa Gê — a que subia na amendoeira, a que costurava sonhos durante a noite — casaria com gajo que ninguém conhecia. Um tipo armado em dono do pais, como se o bairro 71 não lhe disse nada. Não gostamos. Nem um pouco. Decidimos, por lealdade à infância e às nossas pequenas tradições de amizade, que não iríamos ao casamento. Ela tinha quebrado uma das regras sagradas que juráramos seguir desde os tempos em que dividíamos amêndoas e baldes d’águs: “ Apresentar aos amigos o/a namorado/a antes mesmo de pensar em casar”. Ela não o fez. E isso doeu. Não por ciúmes — ainda que um fiapo deles morasse no silêncio de cada um —, mas porque nos sentimos afastados do enredo da sua história justo no momento em que ela parecia alcançar o clímax. Geny era a personagem principal da nossa história. E 2016 será sempre o ano em que tudo começou dado que ali, entre sonhos alinhavados à mão, orações fervorosas, amizades costuradas com ternura, amêndoas mastigadas em uníssono, baldes d’água carregados com fé e o eco nocturno da máquina de costura, nasceu o futuro que hoje carregamos nos nosso nomes.
Etapa/Série: 3º ano – Ensino Médio
Disciplina: Língua Portuguesa
Questões: 7
Prova de Língua Portuguesa – 3º Ano do Ensino Médio
Tema: “A Costureira da Noite”
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Questões
1. (Múltipla escolha) Qual é a principal atividade de Geny no texto?
– a) Jogar futebol.
– b) Custurar.
– c) Vender frutas.
– d) Estudar medicina.
2. (Verdadeiro ou Falso) Geny era conhecida por trabalhar durante o dia.
– ( ) Verdadeiro
– ( ) Falso
3. (Completar a frase) O som da máquina de costura de Geny era comparado a um ________ de 120 bpms, representando ____________ na vida dos moradores do bairro.
4. (Dissertativa) Analise o impacto que a figura de Geny tem sobre os outros personagens do texto. Como suas ações e sonhos influenciam os vizinhos e amigos?
5. (Múltipla escolha) Qual o sentimento dos amigos de Geny quando recebem o convite para o seu casamento?
– a) Alegria e celebração.
– b) Indiferença e desprezo.
– c) Tristeza e afastamento.
– d) Curiosidade e expectativa.
6. (Dissertativa) O texto menciona que cada ponto dado por Geny em sua costura era como uma promessa de que a vida poderia melhorar. Discuta o que essa metáfora representa em relação aos sonhos e aspirações dos jovens.
7. (Múltipla escolha) Ao longo da narrativa, como o bairro 71 é descrito?
– a) Um lugar próspero e desenvolvido.
– b) Um lugar cheio de sonhos e prosperidade.
– c) Um lugar de dificuldades e desafios.
– d) Um lugar sem relevância.
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Gabarito
1. Resposta correta: b) Costurar.
– *Justificativa:* O texto enfatiza a vocação de Geny como costureira, destacando suas atividades noturnas e sua dedicação.
2. Resposta correta: ( ) Falso
– *Justificativa:* Geny trabalhava principalmente à noite, pois durante o dia não tinha tempo suficiente devido aos estudos.
3. Resposta correta: “kuduro”; “a rotina difícil dos moradores”.
– *Justificativa:* O som da máquina de costura é comparado a um kuduro, sendo uma metáfora para o ritmo que ajuda a moldar as dificuldades do dia a dia.
4. Justificativa da resposta: Geny impacta os outros personagens com sua determinação e sonhos, sendo uma fonte de inspiração. Seus amigos, ao seguirem seu exemplo, também buscam melhorias em suas vidas, criando uma rede de apoio e expectativas mais altas.
5. Resposta correta: c) Tristeza e afastamento.
– *Justificativa:* O texto expressa que os amigos de Geny se sentiram afastados e tristes pela mudança em sua vida, devido à quebra de uma tradição de amizade.
6. Justificativa da resposta: A metáfora do “ponto” representa a construção de um futuro melhor e a esperança de que todos, por meio de pequenas ações, podem moldar suas vidas e alcançar seus sonhos.
7. Resposta correta: c) Um lugar de dificuldades e desafios.
– *Justificativa:* O texto descreve o bairro 71 como um espaço marcado por dificuldades, mas também por sonhos e amizade, ressaltando a realidade vivida pelos protagonistas.
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Esta prova propõe uma análise crítica da obra, estimulando os alunos a relacionar a narrativa com suas próprias experiências e interpretações.